quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Resumo do livro: Laços de Família Autor: Clarice Lispector (1960/ Modernismo)

Laços de família é o primeiro livro de contos de Clarice Lispector, publicado em 1960. Nele, estão 13 contos, talvez os mais belos de toda a obra da escritora que apareceu para a literatura brasileira aos 17 anos, em 1943, com Perto do Coração selvagem.
Saudada por Álvaro Lins como a escritora brasileira que poderia ser lida em qualquer país do mundo sem nos envergonhar, segue a linha intimista inaugurada por James Joyce: traduzir a experiência pessoal intensa, a dor de estar no mundo, procurar respostas internas e comoventes. Ler Clarice Lispector é, sem dúvida alguma, perturbador .
Os contos que formam laços de família estão resumidos na seqüência:
1.
Devaneio e embriaguez de uma raparigaInteressante notar que, embora narrado em terceira pessoa, dada a proximidade com a personagem, o narrador usa termos e sintaxe tipicamente portugueses. Eis a história: era uma mulher portuguesa cujos filhos e marido estavam fora entra num estado de êxtase, abanando-se em pleno calor do Rio de Janeiro: "O sol preso pelas persianas tremia na parede como uma guitarra." Deixava a cabeça rodar, imaginar e sentir. Até que adormeceu e o marido chegou. Estava tão aborrecida que nem se importou com ele e nem aceitou os carinhos que este lhe quis fazer. Deixou-se ficar na cama, o marido julgou-a doente. Mas ela "amava... Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar."Fora ao jantar com o marido e o patrão dele, era isso. E não soubera bem o que lhe acontecera, mas um pé tinha buscado o seu por debaixo da mesa. O que certamente lhe despertara todo aquele fogo assemelhado a um cio sem fim. Mas, para vingar-se de estar se achando uma cadela, resolve fazer, antes que os filhos voltassem, uma grande faxina, julgando que, com ela e através dela, aplacasse talvez o que sentira delirando, delirando...
2.
AmorEsta é uma narrativa magnífica, talvez a mais bela entre todas as que estejam em Laços de Família. Como a anterior, trata de uma mulher comum, Ana, bem casada, com os filhos crescendo. A vida era "normal":"Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam , tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instante cada vez mais completos."A vida era feliz: Ana, presa agora ao apartamento que compraram, costurava para os meninos e recebia o marido de volta em casa todas as tardes. Um dia, foi às compras e, depois, cansada, subiu no bonde para voltar à casa. Recostou-se no banco, procurando conforto, num suspiro de meia satisfação. Revê sua vida: plácida, sem tempestades, tudo no lugar. Com o saco de tricô que ela mesma tecera ao colo, cheio de ovos frescos, Ana é apenas uma mulher que vai às compras. Mas vê, com o bonde parado, um cego que , tateando no escuro de si mesmo, as mãos estendidas para a frente, sorri.
A partir daí, Ana tem sua epifania, revelação da vida. Descontrolada emocionalmente, perde o ponto onde deveria descer. Desce no Jardim Botânico e lá permanece, com a alma em estado de sobrelevação, por toda a tarde, até que anoiteça e se veja sozinha. Grita para que abram o portão e arfante chega em casa, onde faz um jantar às pressas para a família. Durante o jantar, não presta atenção a nada, a vida está modificada, o homem mascando chiclete, a cegueira e a vida, a certeza de que a humanidade sofre. Aperta o filho a ponto de assusta-lo e, quando todos se vão, diante do espelho, ouve o fogão dar um estouro. Era um defeito do fogão, mas que a traz de volta para a vida cotidiana. Abraça o marido, diz que não quer que ele sofra ( ela estava sofrendo por ter descoberto o mundo). Ele ri, e ela, antes de dormir, sopra a flama do dia.
3.
Uma galinhaNum domingo, uma galinha vai ser morta e comida por uma família. Desde o sábado "encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela." Mas, aquele ser sem nenhum anseio aparente resolveu fugir da iminência do perigo e, num vôo desajeitado, alcançou uma murada de terraço ­ "o tempo da cozinheira dar um grito"- , foi ao terraço vizinho e dali para o telhado.Perseguiram a pobre galinha, "sozinha no mundo, sem pai nem mãe', arfava, desesperada. Mas , afinal, um rapaz a alcançou e foi, depois, pousada no chão da cozinha "com certa violência." E , de pura afobação "a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta."Pai e menina decidem que não se pode matar a galinha, que fica morando com a família. Mas passaram-se dias e dias. Um dia, esquecidos de tudo, mataram-na, comeram-na "e passaram-se anos."
4.
A imitação da rosaLaura, casada com Armando, saiu de uma clínica psiquiátrica e espera o marido e os amigos para irem jantar. Enquanto espera, analisa sua imperfeição de mulher afeita à rotina, de coxas grossas, baixas, sem filhos, chata e desinteressante.Enquanto isso, olhando uma rosa perfeita que trouxera da feira pela manhã, acha-se sentada no sofá da sala, como se fosse uma visita, esquecida por Armando e seus amigos. Lera no colégio a Imitação de Cristo. Mas sentira, sem nem bem entender por que, que imitar Cristo era a pior das coisas que se pudesse fazer, porque o Cristo era a pior tentação.Devaneia, olhando as flores que a empregada trouxera para a sala. Vai se afundando nos devaneios, voltando a sentir o mundo daquele jeito que a levara à clínica. Uma perdição, o mundo.Quando, finalmente, Armando chega "Ela estava sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável. Com timidez e respeito, ele a olhava. Envelhecido, cansado, curioso. Mas não tinha uma palavra sequer a dizer. Da porta aberta via sua mulher que estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranqüila como num trem. Que já partira."
5.
Feliz AniversárioNo dia em que completa 89 anos, Anita é homenageada pela família que vai a seu aniversário organizado pela filha Zilda, com quem morava. Desfilam diante de nós as criaturas daquele universo, e desfilam também seus vícios humanos, suas pequenas covardias e esperanças, seus ódios mesquinhos, suas invejas trágicas, a rivalidade entre os irmãos, noras e genros, o egoísmo brutal daqueles seres que, como ratos, se acotovelavam ao redor daquela mulher silenciosa, que a tudo observava, sentada à cabeceira da mesa.No centro da mesa, um grande bolo açucarado. Anita estava sentada ali há muito tempo, desde a hora do almoço, só para "adiantar o expediente". Uns nada traziam, outros levavam-lhe presentes mesquinhos: "saboneteira, uma combinação de jersey, um broche fantasia, um vasinho de cáctus."Zilda estava nervosa, ninguém a elogiara nem a ajudava, todos suavam, a mesa imunda. O filho mais velho acendeu as velinhas e pediram à aniversariante para que cortasse o bolo. Com força, com raiva, "a velha pegou a faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina." Todos se espantaram e mais se espantaram quando ela pediu:"- Me dá um copo de vinho!"Perguntaram se não ia lhe fazer mal, vovozinha. E ouviram todos o que mereciam:"- Que vovozinha que nada! Explodiu amarga a aniversariante. Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me dá um copo de vinho, Dorothy!, ordenou."E todos se espantaram, mas suportaram.E ereta, sentada à cabeceira da mesa, a aniversariante pensava se ia ou não haver jantar. "A morte era o seu mistério."
6.
A menor mulher do mundoMarcel Petre, homem do mundo e explorador, encontrou nas profundezas da África Central uma tribo de pigmeus "de uma pequenez surpreendente." E lá ficou sabendo que havia uma outra tribo, com seres menores do que estes.Penetrando mais e mais na África Equatorial, no seio da floresta úmida e quente, encontrou os menores entre os menores pigmeus. E entre eles, uma mulher pequena e negra, a quem apelidou Pequena Flor. Ah, como natureza tem lá seus mistérios e perversidades! Pequena Flor estava grávida e sua barriga brilhava. E ela tinha apenas 45 centímetros de altura!Ela se apaixona pelo explorador e a fotografia da pequena mulher foi estampada em tamanho natural nu jornal da Europa. Uma mulher não quis olhar pela segunda vez a foto porque lhe dava aflição; num outro apartamento , uma senhora que v6e a foto jamais poderia ser deixada sozinha com aquele pequeno ser, tal era a sua bondade que, às vezes, é perversa.Uma menina de cinco anos, em outra casa, viu o retrato e descobriu que não era o menor ser do mundo; uma noiva, em plena primavera e em êxtase de piedade, observou como a pigméia era tristinha; em outra casa, um menino esperto imaginou colocar aquele ser na mochila do irmão e em outra casa, ainda, deram-se ao trabalho de medir com fita métrica , junto a uma parede, o tamanho da mulherzinha africana.
Enquanto isso, na África, Pequena Flor dizia a Petre que era bom, muito bom, ter uma árvore para morar...
7.
O jantarO conto é narrado em primeira pessoa por um observador de um homem que come solitariamente num restaurante: o velho poderia ter uns sessenta anos, era alto, corpulento e de cabelos brancos, sobrancelhas espessas e um anel no dedo.Come com fúria, revirando a comida e pedindo vinho. Mas há algo errado com ele: leva o guardanapo aos olhos e o narrador v6e que ele enxuga uma lágrima, o que causa enorme mal-estar ao observador: o que tem este homem que aparentemente é forte?Isso faz com que o observador imagine que ainda, ele, é um homem. E está no mundo. V6e o estranho afastar-se após ter comido: pôr o chapéu, passar as mãos pelos cabelos, acariciar a gravata no espelho.
O que há com ele? E o narrador registra:"Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue."
8.
PreciosidadeNarrado em terceira pessoa, conta a história de uma adolescente de 15 anos, feia, que se defendia do mundo através de seus sapatos que faziam um barulho tão feio quanto ela. Tinha medo de crescer, de tornar-se uma jovem mulher, e , amanhecendo o dia, saía de casa sem quase tocar na comida do café da manhã.A preciosidade de que trata o título do conto é esta: o medo de crescer e se tornar uma mulher. Mas um dia é notada pelos rapazes que a tocam e derrubam seus cadernos. Cresce com este toque violento. À noite, exige sapatos novos, afinal, sem que quisesse, crescera. E o narrador nos aponta: "Há uma obscura lei que faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto, pássaro de fogo." Sentia-se finalmente mulher.
9.
Os laços de famíliaDurante as duas semanas que permanecera em visita à filha Catarina, a mãe hostilizara o genro e estragara o neto com guloseimas. Agora, na hora da partida, se despedira amorosamente do marido da filha e ambas rumavam, de táxi, para a estação.Contava e recontava as malas e perguntava à Catarina se não esquecera nada. Já no táxi, transforma-se em sogra exemplar de exemplar genro; desculpa-se com a filha, mas insiste que o menino está magro demais, nervoso demais... Com o deslocar do carro, mãe e filha se encostam repentinamente, "numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. " Mas nunca tinham , antes, se abraçado ou beijado.
A velha Severina continuava a perguntar se não esquecer nada, o que irrita a filha que lhe entrega as luvas.
Quando colocaram as malas no trem prestes a ir embora, a filha, olhando a cabeça da mãe que aparecera na janela. E constatou que ela estava velha e que tinha os olhos brilhantes. Mas o trem não partia e já havia acabado o que dizer. Mas se recomendam como se se amassem demasiado. Catarina teve , de súbito, vontade de perguntar-lhe se fora feliz com seu pai.
Ao voltar para casa, olha o filho magro e nervoso e sabe que um dia tudo será como o que hoje viveu: sem intimidade com ele. E se aproxima dele, sabendo que o empecilho da avó se fora e que um dia será também um empecilho para ele. E resolvem ir ao cinema.
10.
Começos de uma fortunaNo café da manhã, numa dessas manhãs "que parecem suspensas no ar. E que mais se assemelham à idéia que fazemos do tempo", Artur e os pais tomam café, conversam amenidades. Nota-se que o rapaz transforma sua carência afetiva em ânsia pelo dinheiro: "e um desejo de entesourar, de possuir com tranqüilidade, dava a seu rosto um ar perdido e contemplativo."Assim é que se começa uma fortuna, com pequenos medos como, por exemplo, de pagar a entrada do cinema a Glorinha, achando que ela vai explora-lo. Para livrar-se dela, acusa-a interiormente de fácil e , por fim, não ocorrendo tais carícias durante a sessão, acusa-a de te-lo explorado a troco de nada.E o conto termina à mesa do jantar, com o pai preocupado com dinheiro e o filho solitário, instado pela mãe a comer prosaicamente uma batata.
11.
Mistério em São CristóvãoNuma noite de maio, uma família se reúne ao redor da mesa: pai, mãe, avó e três crianças e uma mocinha magra de 19 anos. Lá fora, os jacintos rígidos perto da vidraça. Tudo aparentemente em paz quando vão dormir.Mas pela madrugada, três rapazes mascarados: um de gato, outro de touro e o outro com máscara de demônio, entram no jardim para furtar os jacintos. Mas a mocinha acorda e grita, acordando em susto o pai, a mãe e a avó. Os mascarados conseguem fugir, ainda que deixem os talos quebrados nas plantas úmidas. Num momento, todos voltam a ser o que eram: a avó pronta a se ofender por qualquer coisa, o pai e a mãe fatigados e as crianças insuportáveis.
Talvez em outro maio consigam novamente o equilíbrio que parecia, à mesa, naquela noite, ter sido conquistado.
12.
O crime do professor de matemáticaEnquanto os sinos tocavam lá em baixo e podiam ser vistos os telhados das casas, um homem enterra no alto da colina um cão que fora por ele encontrado na rua. Era o homem um professor de matemática, meia idade, míope, frio, e enterrando ali o cão alheio se lembra do seu : José, nome de homem que dera ao seu cão.
Depois de hesitar um instante, abriu o saco onde estava o cão morto e pôs a trabalhar: colocou-o no terreno. E sentou-se ao lado do animal, observando a paisagem. E resolveu que enterraria o cachorro ali. Trabalhando com a pá, suava penosamente. Pousou o corpo do animal dentro da cova que, rasa, após coberta deixou ver na saliência que o professor aplainou com a mão, o corpo do animal.
Após enterra-lo, pôs-se a pensar no "verdadeiro animal" que deveria estar enterrando e que deveria, agora, estar vagando nas ruas de uma outra cidade. O professor, com a conveniência da família e porque não suportava o amor de José, que nada pedia ou exigia, resolveu abandona-lo em outra cidade. E assim o fez. Abandonou-o, praticara um crime de que ninguém desconfiava: renunciara, como homem, ao conhecimento do amor integral e despreendido, do qual José era apenas a primeira lição.
Enquanto enterra o cachorro que nem seu fora, dialoga com o cão que lhe pertencera: arrependimento, saudade, tristeza pela profunda covardia...Num gesto inesperado, levanta-se e desenterra o cão alheio, olha seus olhos abertos e cristalizados e desce a colina em direção ao seio da família.
13.
O búfalo"Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros.
A mulher desviou os olhos da jaula, onde só o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico."É assim que O Búfalo começa. Uma mulher desesperada, que não entende porque fora abandonada pelo homem que ela amava, vai ao Zoológico buscar, entre os animais, uma fúria como aquela que carregava no coração: "Eu te odeio", disse ela para um homem cujo único crime era o de não amá-la. "Eu te odeio, disse muito apressada."Dentro de um casaco marrom, em plena Primavera carioca, a mulher visita os animais. Descobre que, entre eles e o mundo, entre o mundo e todas as coisas, tudo era regido pelo amor que a enfurece.Diante da jaula do leão, tem certeza de que "Mas isso é amor, é amor de novo." E continua a andar. Então, vê a girafa , e "a girafa era uma virgem de tranças recém-cortadas. Com a tola inocência do que é grande e leve e sem culpa." Desviou os olhos, sentindo-se doente, doente.
O hipopótamo era um "rolo roliço de carne roliça e muda." Ela teria coragem de matar aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos "felizes como ervas, a macaca com olhar resignado de amor."Pensou subitamente: "Meu deus, me ensine somente a odiar."O elefante suportava docilmente o próprio peso, "E os olhos , numa bondade de velho, presos dentro da grande carne herdada." E experimentou o camelo, "O camelo em trapos, corcunda, mastigando a si próprio, entregue ao processo de conhecer a comida."E lágrimas encheram os olhos da mulher, lágrimas que não correm, presas também à sua carne herdada. E dentro de si mesma perguntava quem seria seu par neste mundo. Foi à montanha russa, "aquele vôo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar, aquele espanto." Mas nada disso bastava-lhe para aplacar a fúria terrível das perguntas mal-respondidas.Teve, ao descer, uma súbita vontade de matar, mas que animal lhe ensinaria esse mundo com gosto de sangue que ela procurava?Ah, fora abandonada pelo homem que amava... e recomeçou a andar, não queria resignar-se nem tampouco pedir perdão. Foi então que viu o búfalo. Ali, diante dele, atrás do alambrado, instigou-o, gritando, chamando a atenção do animal que, como ela, era pura fúria de viver. O animal veio para perto da grade, olhavam-se: de quem seria o maior ódio? Sentiu vertigem ao ver o ódio com que ele a olhava, "presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara."E antes de que seu corpo caísse, a mulher viu um céu inteiro e um búfalo.

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